you done lost your good thing now

chovia. muito. a hora era mais ou menos umas duas da manhã. ele não sabia direito, pois a última vez que olhara fazia um tempo. ele tinha guardado o celular - que rivaliza com os relógios de pulso - nas cuecas, com medo de molhá-lo. eram mais ou menos umas duas da manhã quando ele entra pela porta. tira o casaco molhado e joga no box do banheiro. tira as calças, as meias, o celular da cueca, e a camiseta. seca-se com a toalha meio molhada do banho que tomara horas antes e põe os chinelos. pega a camiseta que usou antes de se trocar pra sair e se dirige pra cozinha, onde põe água pra aquecer no fogão.

como se bufasse, procura algo na cozinha que tenha movimento e possa servir de referencial pra marcar o tempo que a água tá demorando pra aquecer. anda pros lados, de um pro outro. desiste. vai até a sala. fica correndo os olhos pela estante onde guarda os vinis e põe um certo cara, que canta It's my own fault, baby, treat me the way you wanna do, como se lesse o pensamento dele. ele senta na poltrona ao lado e começa a pensar no que acabou de acontecer, há apenas algumas horas atrás.

lembra de ter se arrumado, sem muitas espectativas; de ter saído, sem muita pressa; de ter chegado, sem muita pompa; de ter bebido, sem muita companhia. lembra de ter pensado que ela poderia estar lá, sem muita fé. e lembrou o que seu avô uma vez disse, a falta de fé será o fim dos homens, falou baixinho, como se pudesse haver mais alguém no apartamento para ouvi-lo falando sozinho.

o causo é que ele foi só pra ouvir a banda tocar. ele gostava muito da música e estava precisando ouvir um som que não saísse de um tocador de vinil, só pra variar. ficou na frente do palco, bem perto da banda, e estava curtindo a sua música preferida quando ela apareceu. e ficou ao seu lado. o coração bateu forte, parecia que queria mais espaço no peito, mas não havia, não adiantava bater. ele olhou de canto de olho, não sabia se dava oi ou não. percebeu que ela o vira e, vez em quando, mirava ele. pensou em deixá-la tomar a iniciativa, sabia que ela estava magoada com ele. e esperou.

ela some. ele se apavora. vai ao banheiro várias vezes, mesmo sem vontade, só pra fazer o percurso palco-banheiro-palco na esperança de encontrá-la. vê nada. quase duas horas se passam e ele perde as esperanças. decide ir embora. na saída, a vê aos beijos com alguém da banda. a vê sorrindo, e ao vê-la assim, sente-se duplamente traído, por ela e pela música. deixa o lugar ignorando a chuva e volta pra casa a passos de formiga, chutando sua face refletida nas poças d'água do caminho. quando chega em casa, mais ou menos, às duas da manhã.

***

entra em casa. troca as roupas molhadas por roupas secas. põe água a ferver no fogão. perambula pelo apartamento. põe um vinil pra tocar. senta na poltrona. devaneia. dorme. há fogo pelo apartamento. o tempo passa.

ela entra. usa a chave que ele deu pra ela há tempos - a única que recebera e receberia de alguém, a primeira e única. vê a fumaça. procura por ele aos berros. o desespero toma conta. vê ele com os olhos fechados, na poltrona. corre em direção à origem da fumaça. com esforço, consegue apagar o fogo com o extintor que ele mantinha perto do criado-mudo. liga pro SAMU.

corre até ele, o deita no chão. chama, com desespero pelo seu nome, em vão. chora. deita. dois corpos repousando no chão. um estático, outro não. enquanto isso, o cara do vinil cantava Oh, you once said you loved me, baby, and you would do anything i said. Oh, but the way you treat me now, baby, I just soon rather be dead!